*Relato da minha experiência num artigo feito para a revista Olhar, do Jornal da Madeira.
Por todo o lado.
Acordei sobressaltado com um telefonema a dar conta que o Funchal estava a ser atingido por fortes enxurradas. Estava de folga esse fim-de-semana. Levantei-me num ápice e através de alguns telefonemas apercebi-me que a situação era grave.
Pouco tempo depois, já saltava para dentro do carro.
Benzi-me e segui.
Notei que o nevoeiro naquela manhã era denso, em certas zonas da cidade. Liguei os quatro piscas, os faróis de nevoeiro e, cautelosamente, fui descendo para o centro. Era o único naquele sentido. Todos os outros subiam. Parei na zona dos Ilhéus, perto do acesso à Ribeira de São João, mas suficientemente distante para não ser apanhado por qualquer eventualidade. De impermeável com capuz, guarda-chuva e mochila à costas comecei a caminhar em direcção à ribeira.
As pessoas andavam descontroladas de um lado para o outro. Umas mostravam medo, outras curiosidade. Da ribeira saíam sons poderosos. As águas revoltas desciam velozes e insaciáveis perante tudo o que lhes aparecia à frente. Nada lhes escapava. Mais cedo ou mais tarde, tudo cedia.
Continuei a descer. Passei o edifício 2000 e, em seguida, a rotuda do Dolce Vita. Vi as primeiras “ebolições” de terra, lama e pedras saírem da zona aberta da rotunda e antevi que aquele seria um dos pontos sensíveis. Uma fissura enorme na estrada confirmava os meus receios.
Prossegui em direcção à Rua Dr. Fernão de Ornelas. Mas antes fotografei com a câmara do telemóvel a marina, a Avenida Sá Carneiro, a Avenida do Mar, o Cais do Funchal, a Assembleia, etc., etc. até chegar ao Jornal da Madeira. Queria assegurar que teríamos todos os momentos, apesar de saber que já havia equipas do Jornal da Madeira no terreno.
Uma das imagens fortes desse dia – e houve muitas – foi ver a partir do início da Fernão de Ornelas a água a passar por cima da ponte do mercado.
Uma massa de água poderosa, impossível de conter, galgou todos os obstáculos e engoliu a ponte, fazendo acreditar que a passagem não tinha resistido. Parecia uma cobra sem fim, pela forma como a água misturada com a lama descia a ribeira de João Gomes.
Cheguei ao Jornal. Pedi uma máquina fotográfica, um gravador e voltei a sair. Ignorei o incómodo guarda-chuva, apesar da precipitação continuar. O casaco com capuz seria suficiente, achei.
Estive durante seis horas na rua, andando de um lado para o outro, subindo e descendo, percorrendo caminhos pelo meio da lama e com água por vezes até aos joelhos, fotografando e entrevistando. Fui à muito atingida zona do Campo da Barca. A força da água em frente à Secretaria Regional do Equipamento Social era verdadeiramente impressionante.
Voltei para trás, subi a Pena e comecei a contar. 1, 2, 3,… 10, 22,… 27,… 30 carros destruídos. Um deles era dos bombeiros. Porém, nenhum morador, de um lado ou do outro da estrada, ligava àquele cemitério de lata. Na verdade, ninguém tinha mãos a medir face ao que lhes tinha acontecido nas suas próprias casas. Todos limpavam. Às vezes numa luta inglória, porque a chuva trazia tudo de novo. Mas ninguém desistia.
Disseram-me que mais acima, na Luso Brasileira, tinha acontecido uma tragédia. Continuei até lá chegar. E o que vi foi chocante. Carros atravessados no meio da estrada, lama a tapar o tornozelo, bombeiros de um lado para o outro, pessoas aflitas, um carro quase a cair… Nesse carro tinham estado três pessoas, duas não escaparam, uma tinha apenas cinco anos. Mãe e filho sucumbiram. Vi o menino ser retirado, já sem vida.
Rapidamente, apercebi-me tinham caído para cima das casas na Luso Brasileira dois outros carros. Um era táxi. Conforme o tempo passava, o número de mortos foi crescendo. Primeiro três, depois cinco. Nos dias seguintes continuou a aumentar.
Do meio do entulho, uma mulher gritava. Foi socorrida. Estava descontrolada. Só estava preocupada em socorrer os oito cães e o papagaio que tanto adorava. Achava que o marido estava bem. Até se aperceber que já não sabia onde ele estava. Veio o desespero. O choro. Os gritos.
É impossível alguém não se sentir abalado perante uma tragédia destas dimensões e com tantos dramas à mistura. Ainda assim, tentámos – e julgo que conseguimos – relatar com rigor tudo o que se passou. Fizemo-lo primeiro nas instalações da empresa “O Liberal”, pois os sistemas do JM foram seriamente afectados pelo temporal, e depois na RJM e, por fim, já na redacção do jornal.
Cada um nós regista os momentos que passou. Uns mais trágicos do que outros, seguramente. Mas nunca mais sairá da memória colectiva dos madeirenses o fatídico dia 20 de Fevereiro de 2010.
Eis os primeiros registos que colhi. São os primeiros porque depois de ter passado pelo jornal, comecei a recolher as imagens com a máquina fotográfica e essas não fazem parte deste bloco de fotografias.

Primeiros sinais na rotunda do Dolce Vita

Primeiros sinais na rotunda do Dolce Vita

Primeiros sinais na rotunda do Dolce Vita

Rotunda do Infante

Avenida do Mar

Marina do Funchal

Marina do Funchal

Marina do Funchal

Foz da Ribeira de São João

Foz da Ribeira de São João

Foz da Ribeira de São João

Praia do Funchal, ao lado do Cais da cidade

Barco dos Beatles

Avenida do Mar

Avenida do Mar

Avenida do Mar

Ribeira de Santa Luzia

Ponte do Bazar do Povo (temia-se que ruisse)

Rua 31 de Janeiro

Rua do Seminário (ao fundo estacionamento do Anadia)

Rua Dr. Fernão de Ornelas (autoridades andaram de bote no ponto alto da enchente)

Pena (30 carros destruídos, pelo menos)

Pena

Pena

Pena

Pena

Pena